segunda-feira, 12 de abril de 2010

Os contra-racistas versus os contra-racistas e a ausência do racista

Lourenço Cardoso
(Texto escrito em 2006 publicando In: PPPCor)

No Brasil, o projeto de lei de Cotas (PL 73/1999) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que será submetido a uma decisão final no Congresso Nacional suscitou o manifesto de “intelectuais” e militantes “a favor” e “contra” as políticas de ação afirmativa (políticas de AA).
Esse debate possui um aspecto curioso. Os dois manifestos se colocam contra o racismo, portanto, reconhecem a existência do racismo, e se posicionam como anti-racistas implicitamente e explicitamente.
É curioso que o debate sobre as políticas de ação afirmativa, ocorra somente entre as partes que são anti-racistas. Se ambos manifestos são anti-racistas, podemos concluir que eles apesar das posições antagônicas possuem o mesmo objetivo, o combate ao racismo. Aliás, esse é também um dos objetivos daqueles que argumentam “a favor” da aplicação dessas políticas.
Nesse debate sobre políticas públicas encontramos a presença do racismo. Ele é o ponto de convergência entre os dois manifestos. A divergência é a maneira de combatê-lo ao utilizar ou não utilizar as políticas de ação afirmativa. Um manifesto é “contra”, e o outro “a favor”, os dois manifestos foram suficientemente argumentados, e compete ao leitor tirar as suas próprias conclusões. Eu particularmente, posiciono-me “a favor” desse tipo de políticas.
Se existe um consenso entre os dois manifestos sobre a existência do racismo. Do mesmo modo, percebe-se nos dois manifestos a ausência de se problematizar o racista. Onde se encontram os racistas? Qual a posição dos racistas? Há racismos sem racistas?[1] O posicionamento contra o racismo elimina os racistas?
Se eu dissesse, que ser contra a política de ação afirmativa é a posição de um racista, acho que estaria sendo injusto, reducionista e insensato, por isso não digo. No entanto, não podemos fechar os olhos para os racistas brasileiros.
Acredito que esses racistas são provavelmente contra as políticas públicas que privilegiem os negros, eles são provavelmente contra discriminações, “discriminação positiva”, discriminação “a favor” de negros e “indígenas”. Esses racistas personagens ausentes desses dois manifestos, talvez, ao defenderem a idéia de que são contra as discriminações, alargam-na. Talvez argumentem que são contra todos os tipos de discriminações.
Sugiro que esses racistas são contra as políticas de ação afirmativa porque se é difícil encontrar no Brasil alguém que se declare racista, pior, será encontrar um racista a favor de políticas públicas destinadas aos não-brancos.
Talvez o racista, esse “ilustre ser ausente” desses dois manifestos, dessa discussão sobre o racismo, esteja presente em ambos os manifestos. Ao meu ver, o mais hipócrita, ou mais maquiavélico talvez seja o racista presente no manifesto contra as políticas de ação afirmativa.
Caro leitores, dito isso, de maneira nenhuma, pretendo insinuar que todos aqueles que são contra essas políticas são racistas, nada disso! De maneira nenhuma pretendo insinuar que os racistas escreveram um manifesto, que fez com que os anti-racistas reagissem. Nesse ponto, vale uma nota, geralmente, o negro anti-racista é reduzido a um sujeito que somente reage ao racismo branco, em outras palavras, esse negro seria incapaz de pensar e fazer qualquer outra coisa, que não fosse reagir ao racismo branco.
Caro leitores, assim como dizia, nem todos aqueles que são contra as políticas de AA são racistas, talvez, existam racistas a favor dessas políticas pelas suas próprias razões.
O estranho é que nesse debate contra o racismo suscitado pelas políticas de ação afirmativa, seja realizado somente entre as partes que reconhecem o racismo e se colocam explicitamente ou implicitamente contra o racismo. Estranha-me também o fato de que no debate contra o racismo, o racista seja um ilustre sujeito ausente. Há racismos sem racistas? Há racistas sem racismos? Porque se referir ao racismo e se calar quanto aos racistas?
Esse debate suscitado por esses dois manifestos sugere, que discutamos os estudos, ou realizemos novos estudos sobre o suposto racismo institucional praticado e reproduzido pelas universidades. Esse debate suscita pensarmos em maneiras de combater os racismos e os racistas. A política de ação afirmativa não seria em princípio uma proposta nesse sentido? Não seria uma alternativa para combater o racismo institucional acadêmico, entre outros racismos?
Parece óbvio, que podemos pensar, e debater outras alternativas, talvez pouquíssimas pessoas sejam contra debater alternativas, talvez, pouquíssimas pessoas sejam contra a melhora da qualidade do ensino público fundamental e médio. E desde quando as políticas de ação afirmativa são um impedimento para a melhoria da qualidade do ensino básico?
Melhorar a qualidade do ensino médio e fundamental é dever de qualquer governo, e uns dos nossos direitos fundamentais. Se a qualidade do ensino não vem ocorrendo as políticas de ação afirmativa não têm responsabilidades a esse respeito. Qual a contradição que existe entre a melhora do ensino público fundamental e médio e ao mesmo tempo aplicar as essas políticas? Alguém pode me explicar?
Se de um lado pensarmos que nesse debate sobre as políticas de ação afirmativa re-alimentado por esses dois manifestos, o que inquieta é a ausência da problematização sobre o racista, e a naturalidade com que não é percebida, ou referida essa ausência. Esse debate configurado como tal com essa ausência, penso que, já começa sob os alicerces da hipocrisia.
Essa ausência de se problematizar o racista é um dos indicativos dessa hipocrisia. E se o debate é feito sob os alicerces da hipocrisia, inevitavelmente corremos o risco de caminhar para manutenção do status quo. Manutenção do status quo que convém aos racistas, diga-se de passagem.
Por outro lado, podemos pensar que não é tão estranho assim: um debate contra o racismo realizado somente entre anti-racistas. Um debate com a ausência da reflexão sobre os privilégios do racista numa sociedade racista, afinal, ainda se escuta muito a frase: “aqui ninguém é racista!” E se ninguém é racista no Brasil, parece evidente que o debate sobre racismos seja restrito somente aos anti-racistas; anti-racistas esses com as melhores intenções.

[1] Santos, B. S. 2002. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63: 237-280.

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